FERMENTAR A VIDA
A humanidade é impensável sem a fermentação
por ramiro murillo
A fermentação é algo anterior à humanidade. As bactérias, primeiros seres vivos da história, fermentavam. Elas quebravam moléculas complexas de açúcares para formar gás carbônico, álcool e ácidos. Muitos animais se beneficiam da fermentação. O cão, por exemplo, não enterra o seu apreciado osso para escondê-lo, mas sim para colocá-lo em um ambiente aquecido e úmido e então fermente mais rápido. O osso amolece e fica mais fácil de roer.
Desde milhares de anos, toda cultura fermenta. Seja na América pré-colombina (chocolate, chicha, tucupi), Europa (vinho, queijos, chucrute), Oriente médio (vinagre, iogurte, queijos, kefir), Ásia (kimchi, misso, tofu, shoyu, sake) ou na África (pão, cerveja, kawal, fufu), a humanidade encontrou maneiras incríveis de transformar os alimentos. O alimento fermentado ganha uma nova qualidade e já não é o mesmo de antes. A soja crua nada tem a ver com o shoyu. A cevada in natura nada tem a ver com a cerveja.
O processo químico envolvido na fermentação tem como produto substâncias que mudam a textura e sabor dos alimentos. Seja com o simples objetivo de conservá-los (o ácido e álcool resultantes da fermentação inibem a degradação por microorganismos), fazer bebidas alcoólicas, ou transformá-los radicalmente (tome a mudança envolvida na transformação da soja em tofu ou misso, por exemplo), aquele que desenvolve técnicas de fermentação sente-se com o poder de um alquimista.
Já parou para pensar que o leite da mesma espécie, a vaca, dependendo de como é fermentado, pode gerar um queijo meia cura, um camembert, um parmesão ou um roquefort? Isso sem contar os literalmente milhares tipos de queijo encontrados no mundo?
E tomo a liberdade poética de dizer que a fermentação é transubstanciação, para relembrar questões místicas (o pão vira a carne de Cristo). Com isso, digo que a fermentação realmente transforma uma substância em outra. Através de uma série de reações químicas envolvidas na atividade de bactérias e leveduras, lentamente uma substância doce como a uva, por exemplo, transforma-se em vinho, com uma possibilidade infindável de complexidades de sabores.
Uma análise mais técnica diria que não: a uva e o vinho têm a mesma substância, porém em ligações moleculares diferentes. Porém, convenhamos que o vinho parece ter uma natureza diferente que a uva. A uva é e não é o vinho. O vinho é a uva que foi fermentada com muita técnica, e é esta nova matéria que tanto os enólogos e boa parte da população mundial apreciam, e não a uva in natura. O vinho é o milagre da uva.
Dê trigo e água a uma criança. Ela no máximo vai se divertir muito fazendo uma grande meleca, um slime primitivo, e depois vai pedir socorro para conseguir se limpar. Agora, moa o trigo, misture com a água, fermente e asse um pão. Você poderá alimentar esta criança para o resto de sua vida.
A fermentação permitiu que muitos povos de climas frios tivessem alimento disponível durante meses de inverno rigoroso. A fermentação está envolvida na maioria das bebidas alcoólicas. É devido a ela que podemos apreciar uma barra de chocolate, temperar uma salada com vinagre ou passar manteiga no pão.
Pense na nossa vida sem a fermentação. Imagine todos os pratos que você come, e procure saber quais dependem da fermentação. Nossa vida, aliás, só existe graças à fermentação. É das bactérias fermentantes primitivas que viemos.
A fermentação é, de fato, um milagre.
TEMPO: INGREDIENTE SAGRADO
Assim como nossa vida não existiria sem a fermentação, a fermentação não existiria sem o tempo. Toda fermentação leva tempo. Pode ser horas e dias, como no caso do pão ou do iogurte, mas pode levar meses, como o vinagre, o chucrute e a cerveja, ou até anos, como o vinho ou o shoyu.
O tempo é a grande entidade que deve ser respeitada na fermentação. Qualquer tentativa de acelerar o processo vai inevitavelmente comprometer o resultado. O tempo da silenciosa atividade microbiana é sagrado.
Não é à toa que minha padaria está cheia de timers. Cada massa tem seu tempo de fermentação, e preciso respeitá-las para obter um pão de qualidade.
Olhe os alimentos fermentados que há na sua casa. Perceba a maravilha que é a sua invenção. Agradeça àqueles que dedicaram tanto tempo de suas vidas para desenvolver e transmitir as técnicas de fermentação. Com certeza você vai apreciar a comida de outra maneira.
Ramiro Murillo
fevereiro de 2020